18 de mar. de 2012

La Denser

Márcia Denser estará também na FestiPoa. Ela virá falar sobre o seu novo livro, a sair em 2012, Politicamente incorreta, seleção de ensaios sobre cultura, literatura e política publicadas no site Congresso em Foco. A entrevista a seguir foi publicada no jornal Vaia, em 2009, quando La Denser publicou o romance Caim.


                                                                                              foto: Raquel Brust



Márcia Denser pertence àquele time seleto de escritores – no qual jogam Millôr Fernandes, Luis Fernando Verissimo, Paulo Francis e Fausto Wolff – cuja leitura é sempre um gratificante exercício de inteligência. Nas páginas de jornais, revistas ou internet, a gente teve e tem o privilégio de ler esses craques cotidianamente. 

Não por coincidência citei esses cinco. Todos eles, escritores e jornalistas, escrevem ou escreveram sem nunca terem feito nenhuma concessão a qualquer idéia que fosse alheia às suas próprias maneiras de pensar. Prove as crônicas semanais da Márcia no site Congresso em Foco (www.congressoemfoco.com.br) e diga-me se estou errado. 

Já em seu primeiro livro, Tango fantasma, lançado em 1976, La Denser trouxe uma novidade marcante para a literatura brasileira: a transgressão de um modelo literário feminino. Ela foi a primeira escritora a apresentar suas protagonistas como sujeitos da ação, a personagem na primeira pessoa que assume para si a palavra, a voz feminina com discurso e postura ativa, criticando as relações de poder e gênero, sem meias-palavras ou eufemismos. E não era feminismo de fachada, nem metafísica enjoativa.

Sua personagem mais destacada e alter ego, Diana Marini, é também uma representação da cidade de São Paulo, a paranóica e voluptuosa capital, a dark e cidade musa, palco de sacrifícios de sua mitologia literária. Diana é a personagem central da antologia Diana caçadora, um apanhado de contos que estão entre os melhores da literatura brasileira do século XX. 

No livro seu mais recente romance, Caim, La Denser alterou o seu foco – da mitologia mundana, da metrópole paulista, para a mitologia da família, círculo familiar da quarta geração paulistana. A mitologia e a memória de um eu lírico, pessoal, deram lugar a um eu universal, trazendo uma nova versão para a história de Caim, agora um Caim feminino, em outra perspectiva para além do arquétipo bíblico. Além da qualidade de uma arte superelaborada, o que transparece mais forte em Caim é a generosidade da autora ao contar uma história – não qualquer história – de uma família, não de qualquer família, mas da família de Márcia Denser e também da família universal humana. O resgate de uma parte essencial da memória coletiva.

                                                                                   Fernando Ramos, editor do jornal Vaia

Fale sobre a sua formação, as primeiras leituras e as leituras decisivas. 

Na base de qualquer escritor representativo existe uma biblioteca, no sentido de acervo literário dinâmico e permanente ao seu alcance. Por outro lado, escritor lê tudo, qualquer coisa, de bula de remédio, rótulos de lata a boletins de ocorrência policial. Para aprender “estruturas narrativas”. Mas a ficha só cai na cabeça dele no sentido de que “será escritor” a partir da leitura dos autores nacionais, porque para ocorrer o insight é preciso ler na língua mãe (este dado é fundamental! poucos escritores apontam isto) e sentir a pulsação/evolução das técnicas narrativas. A leitura em outra língua não forma escritores. Autores decisivos para mim foram Machado de Assis, Rubem Fonseca, cronistas brasileiros em geral e Rubem Braga em particular, William Faulkner, Cortázar, Borges, Vargas Llosa, Thomas Mann, Flaubert. Incorporei técnicas narrativas de todos eles, são meus “autores de sustentação”.

Sua literatura transgride um determinado arquétipo feminino e você é apontada como a primeira mulher a apresentar suas protagonistas como sujeito da ação, a personagem na primeira pessoa que assume para si a palavra. De lá pra cá o que mudou da sua visão com relação a essa temática?

De lá para cá, nada mudou, aliás radicalizei mais ainda. Fiquei mais sábia e mais triste...

A sua personagem mais destacada é seu alter ego Diana Marini. Em Caim, a personagem central é Júlia. Que diferenças há entre essas duas personagens?

A diferença é que Júlia Hehl é apenas um personagem e bastante humana, ainda que objetivada em “primeira pessoa”, a importância dela é relativa em relação à trama e demais personagens, quer dizer, ao eixo central da história, que se respalda no mito mas se desenreda num contexto histórico. O problema todo com Diana Marini é que, mais do quê um personagem, ela constela um “arquétipo” feminino atemporal – a sacerdotisa solitária e promíscua, como Ártemis, Astarté, Atárgatis – todas aquelas deusas biscates, cruzes, elas comiam criancinhas! (O que é rigorosamentee correto no caso de Atárgatis à qual se ofereciam sacrifícios humanos, sem contar seus nomes ásperos, eriçados de flechas). O arquétipo exerce um fascínio irresistível sobre o ego, aumentando o ponto cego do olho, e naturalmente não é nada saudável para qualquer autor identificar-se com seu personagem mítico, afinal arquétipos não pagam contas.

Caim é um ajuste de contas com a sua posição na família, e um acerto de contas com a memória. Como foi escrever esse livro?

Esse ajuste de contas com nosso inconsciente pessoal é o liberar-se de repressões, recalques, neuroses, preconceitos infantis e/ou herdados da tribo familiar – são elementos do coletivo que nada tem de pessoal ou autêntico – é a condição para ingresso no mundo adulto, o universo do homem no campo da ação histórica apto a interferir na realidade e produzir a própria história.

Há um trecho no conto Relatório Final, em que você faz uma reflexão que poderia ser entendida como um ideal estético. Está lá no conto: "E tudo isso quer dizer literatura: a requintada crueldade de poder observar atentamente as próprias vísceras expostas refletidas no espelho e imaginando não ser as nossas, como se este refletisse toda humanidade agora - a desumanidade estará dentro de nós, como o olho cego da câmera fotográfica, as lâminas frias da cortina que fecha e abre a objetiva, o vidro da lente, inopinadamente a sangrar, a sangrar, amigos, a sangrar, o fluxo maldito chamado literatura, a sangrar...” Poderia comentar essa reflexão estética?

Bom, isso é quando se faz “metalinguagem”, não é? Ocorre quando o texto literário reflete sobre si mesmo, um fenômeno estético estudado na perspectiva de Bakhtin. O que eu poderia acrescentar a algo que a ficção formulou tão plenamente?

Que avanços e atrasos mais significativos você apontaria na idéia de feminismo que surgiu na segunda metade do século passado? 

Tenho uma crônica com o título Musas de Joelhos onde abordo esse assunto. Citando: “Atualmente, se existe uma crise de representação da mulher no Ocidente, esta é política, crise que envolve o processo de globalização intensificado a partir dos anos 90, quando a mulher ocidental retrocede ao projetar novamente a imagem de mulher-objeto, voltando a agir como objeto do homem e não mais como sujeito da ação, principalmente no cinema comercial norte-americano onde, emblematicamente, ela passa a maior parte do tempo de joelhos a fazer felação no parceiro embora, é claro, não fume. O neoliberalismo combinado Thatcher-Reagan dos anos 80 constituiu-se para diluir, entre outras coisas, as conquistas dos movimentos feministas de 60/70, desagregadoras para o capitalismo, e a este neoliberalismo se une a ação da igreja católica na figura do papa polonês e do atual, alemão, ambos conservadores, impondo as políticas da nova carismática, práticas religiosas idiotizantes que substituem a teologia da libertação da década anterior, aliás já convenientemente massacrada em alguns países da América Central pelas forças norte-americanas. Um puritanismo farisaico se impõe ao lado da hipocrisia do politicamente correto, incentivando a natalidade, condenando e proibindo o aborto, provocando uma nova explosão populacional que abrange não só as classes C e D, como uma nova B, constituída por uma média burguesia emergente da informalidade – inculta, massificada, despolitizada – explosão demográfica que não interessa a ninguém, mas que aos latino-americanos, e particularmente a nós, brasileiros, apenas prejudica e cujas conseqüências, apenas vislumbradas, já são e serão gravíssimas.”

Você estudou em colégio de freiras, e há referências à mitologia bíblica em seus contos. Existe um laço sagrado e firme da Márcia Denser com Deus? 

Absolutamente não! Não chego a ser cética porque costumo pescar nas águas do Inconsciente Coletivo (país dos mitos e arquétipos!), tanto quanto seguir minhas intuições, são estas zonas do Desconhecido que, para mim, ocupam o lugar da divindade.

O seu nome é associado à literatura erótica. Existe uma leitura incompleta ou equivocada de sua literatura?

Este é outro ajuste de contas: a do autor com o próprio gênero. Em função duma pesquisa de linguagem, como produto duma elaboração da linguagem como fenômeno estético, duma consciência plena da língua e da linguagem como instrumento de trabalho, minha personagem não é falada pela língua, não vincula o discurso do outro, ao contrário, desloca o discurso da Tradição para colocar o seu próprio, conquistando o direito à própria voz, à própria fala. E quem detém a palavra, detém o poder. Mas a conquista de uma voz própria, de uma voz pública, coletiva, universal, polissêmica, plurivalente, que se manifesta ao se atingir um estilo único, meta de todo escritor, seja mulher ou homem, é algo que precisa passar antes pelo exercício, pelo domínio, pela superação, pela incorporação de um discurso erótico. O que significa a colocação em primeiro plano da própria subjetividade. Mas nessa questão os escritores-homens também têm contas a ajustar. Não se trata de ter de escrever uma literatura erótica como quem é obrigado a fazer o alistamento militar, se vacinar ou depilar as axilas, se não se tem queda para isso, tudo bem, vide Borges, vide Clarice. A coisa é quando tem e não consegue, quando chega naquele pedaço e não sai nada, ou sai cabeludo ou eufemístico. A minha literatura mesmo com o viés erótico – ou precisamente por seu viés erótico – enseja essa abertura para a essência da condição humana contemporânea.

Falando da importância da literatura no Brasil, você disse que a função da literatura seria acender a luz, conscientizar as pessoas da nossa realidade aqui e agora. Fale um pouco mais sobre isso, e também sobre a importância da língua para o patrimônio individual e cultural de um país como o Brasil.

É pela linguagem escrita, seja discursiva seja poética, seja de caráter pragmático (ensaio científico) ou estético, que se dá a produção do pensamento de um povo. Segundo os grandes teóricos, a linguagem cria o pensamento e vice-versa, um processo de mão dupla, a leitura isoladamente não produz o pensamento, embora seu tempo seja o lento, isto é, de natureza semelhante à reflexão, ela é uma atividade passiva. Por outro lado a escrita é ativa, exige esforço e é deste trabalho que surge a descoberta, o dado novo, o elemento original. Em minha opinião, é possível que quem tenha o dom de escrever tenha como imanente o chamado “tempo lento da leitura”. Lembre-se que outra definição da literatura é dizer o máximo com a maior economia de meios. Os outros povos e outros países – e ninguém mais que os anglo-americanos – são ciosíssimos de seus escritores e pensadores. A hegemonia ou dominação se dá pela imposição de uma ideologia cujo veículo é a linguagem discursiva, escrita e falada na língua do dominador.

Quase nenhum escritor fala o que você falou em entrevista à revista Coyote: “a literatura é um movimento coletivo”. 

Puxa, mas o conceito de literatura como “processo ou sistema” coletivo de obras, autores e leitores é lição aprendida com Antonio Cândido na Formação da Literatura Brasileira. Uma grande literatura não é feita de gênios – o gênio dá até no deserto de Gobi – é feita por “muitos escritores médios”, segundo Mário de Andrade. Essa geração de “muitos autores médios” surgiu no Brasil a partir dos anos 70 por inúmeras razões. Gerações de escritores não se sucedem ano a ano, é preciso exatamente o espaço de uma geração – trinta anos – entre uma e outra. É um saco ficar repetindo o óbvio, contudo não há mais gavetas dos já consagrados, e não há gavetas do porvir, vivemos uma espécie de entressafra.  Mas não, neguinho insiste, na rabeira do momento que passou. Então desabam concursos e prêmios do caralho. Lemos milhares de páginas, calhamaços, MONTANHAS de originais nada originais, de deixar qualquer um besta. Repito: Não há produção genial engavetada, nem gênios incompreendidos a serem descobertos. E se alguém te disser o contrário é porque está tentando te vender alguma coisa. Ou não?