O poeta português Luis Serguilha, que já esteve na FestiPoa, em 2010, volta para lançar seu novo livro Koa'e (Anome Livros/BH). Aqui, um comentário da professora, crítica literária e tradutora Leda Tenório da Motta sobre a poesia de Serguilha.
Palavra e sombra
Aparentemente, temos aqui o contrário do poeta que não
encontra as suas palavras. Já que quem mais fala aqui é a linguagem. Estaríamos
diante de uma poesia que arrisca tudo nas palavras. De uma criação do mundo
pela palavra. De uma poesia feita de palavras.
De fato, palavras não faltam a Luis Serguilha. Parecem ser bem
maiores que a própria vida - se é que há vida antes das palavras -, de tal modo
que a encobrem. Buscam saltar para fora da página, assumindo, muitas vezes, a
letra garrafal. Fazem estranhos elos que explodem a sintaxe. São exasperadoras
porque nada nunca termina de ser dito. Deixam o sentido eternamente adiado.
Oferecem o espetáculo do nonsense, do segredo. Tecnicamente, é o Barroco, neste
caso, desesperado. Para o riso amarelo de Francis Ponge, diríamos que não se
vai aqui muito além do ímpeto, da tentativa, do drama de dizer. O que é uma
homenagem prestada ao partido da expressão.
O sentido não está oculto, está
ausente.O que faz o seguinte sentido: estamos numa turbulência verbal. Se o
hangar é o abrigo no interior do qual se enclausuram coisas, neste caso, nada
fecha o buraco metafísico.As palavras são vento, como diria a sabedoria antiga.
Tantas delas assim ao léu parecem criticar a vanidade de nos
esforçarmos até as idéias e os sentimentos, o homem e seus problemas, inclusive
políticos (lembranças de Saramago!). O poeta de Hangares do Vendaval tem razão
de esquivá-los. Em sã consciência, nesta altura dos acontecimentos, quem poria
o quê - que questões, de que ordem, que questões de ordem - como se diz nas
assembléias - no centro de uma poesia? E quem haveria de lhe cobrar de quê
exatamente está falando, e o que foi mesmo que aconteceu?!
Não podemos saber o
que aconteceu. Para tais perguntas enquadradoras não sequer um começo de
resposta em Luis
Serguilha. O fato, por si só, sugere que se trata de boa
poesia. Por mais difícil que seja reconhecê-la, principalmente no calor da hora
de sua publicação. Já que, apesar do tormento dessa dispensação verbal sem
centro, sem limites, o diferencial aqui é o jorro, justamente, a contundência,
a energia. Apreciada _ aliás - desde a experiência brasileira da poesia que sai
do traço epigramático, do minimalismo, do jeu de mot concretista, diluindo-o
até o cadáver, tanta loquacidade só pode ser vista como salutar.
Mas numa segunda análise, são talvez as coisas e não as
palavras que importam. Tratar-se ia da realidade.Do universo simplesmente
físico. De uma experiência simplesmente sensível. De uma De Natura Rerum, mas
desenfreada.
Agora, estaríamos nos elementos desencadeados, na criação
divina (por assim dizer) e não na criação de algum poeta que se tomasse por
Deus.A ponto de então nos perguntarmos: seria Hangares do Vendaval um poema
cosmogônico, desses que já não se fazem mais? Uma eureka? Uma ciência? Uma
máquina do mundo camoniano-drummoniano-haroldiana mais uma vez repensada?
E já que Serguilha confessa guiar-se por alguns artistas da
palavra que encamparam o parâmetro das artes plásticas - e não o da música -
seria ele, antes que um falador, ou um lírico verborrágico, um pintor do
universo, que quer descrevê-lo, apresentá-lo, captá-lo sensualmente, para tanto
entrando na interioridade dos objetos de todos os reinos, vegetal, animal,
mineral e industrial? Seria ele um
artista plástico que não nega que é conterrâneo e vizinho de porta do fantasma
de Camilo Castelo Branco, que se suicidou exemplarmente, ao saber-se fadado a
ficar cego, quer dizer, a não mais ver o mundo extra-linguagem, ainda que fosse
para melhor interiorizá-lo? Jogaria ele no time dos que pensam que a poesia,
como diria Miloz, são algumas linhas e por trás uma imensa paisagem?
A terceira hipótese é: nem um nem outro. Nem palavras, nem coisas!
De fato, como tudo aqui é observado de muito - mas muito - perto, chegamos a descritivismos
tais da natureza que, no fim das contas, e por excesso de zelo, tudo vira
metáfora. O poeta quer ir às partes mais entranhadas, mais escondidas, mais
inéditas do que encontra fora de si. Mas para narrá-las tem que buscar apoio em
si mesmo. É próprio de qualquer arte que nada possa dar a ver senão dentro dos
seus próprios termos! Assim, a variedade dos fatos externos acaba solicitando
virtuosismos verbais que redundam numa natureza desnaturada, imaginária,
alucinatória, surreal:os “pássaros esplendorosos dos arquivos”, as “ortografias
das corujas”, a “cerveja autografada”, o “burburinho da pedra- pomes”, o “mar
das sutilezas vinhateiras”, a “ervagem bicéfala”…
Há aqui o efeito vertiginoso de um choque, de uma
telescopagem da enunciação e do enunciado.Assistimos a uma espécie de
mise-en-abîme, de que não podemos dizer se rende reflexões sobre a linguagem
vista através dos objetos ou o contrário. O fato é que, olhando bem, as coisas
reduzem-se às palavras… e vice-versa. Tendo começado na expressão e passado da
expressão à experiência e à existência, terminamos num transe enlouquecido.
Apesar da dificuldade extrema de se tirar algo desse perfeito
nonsense em que
Serguilha se movimenta, aparentemente em busca de algum
hangar em que se enclausure, para salvar-se - para salvar-nos - da
loucura, talvez se possa arriscar dizer alguma coisa, totalmente no escuro, e
interrogativamente, sobre o significado deste seu novo livro.
Por que será que, ao lê-lo, não consigo parar de pensar em A Tentação de Santo
Antão de Flaubert? Será que é porque Flaubert, que escrevia romances tão
torturadamente como quem faz poesia, nunca achando suas palavras, toma a santa
personagem no momento mesmo em que as palavras da Bíblia a levam ao delírio?
Ou será que toda esta catástrofe que não sabemos bem qual é,
o que não a impede de ir tomando proporções, ao longo dos 16 passos numerados
da via crucis de Serguilha, não se deixaria ler à luz do poema Aubade de Philip
Larkin sobre a destruição do mundo: “the sure extinction that we travel to”?
Seria este mais um ensaio geral do fim?
Leda Tenório da Motta é crítica literária, tradutora e
professora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Publicou, entre outros, Francis
Ponge- O Objeto em jogo (Imago, 1997) e Proust- A Violência sutil do Riso (
Perspectiva, 2007).
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