16 de abr. de 2012

Ivo Bender: grande entrevista com o homenageado

Nesta quarta-feira, 18 de abril, às 18h30min, tem início a 5ª edição da FestiPoa Literária. Diones Camargo, Regina Zilberman e Tatata Pimentel recebem o homenageado do evento, o dramaturgo, ficcionista e tradutor IVO BENDER. O palco desse encontro que celebrará a obra do dramaturgo será o bar Ocidente. Às 20h30, no mesmo local, haverá ainda uma leitura dramática ‘surpresa’ de um texto de ficção inédito de Ivo, a cargo de elenco constituído por Clarice Muller, Camila Ali, Rose Canal, Gabriela Poester, Natália Koehler Karam, Ana Paula Goettens e Martina Faccioni Fensterseifer.

Dramaturgo, tradutor (Racine, Harold Pinter e Emily Dickinson) e professor, Ivo Bender nasceu em São Leopoldo-RS, em 1936. Há cinco décadas escrevendo para teatro, Ivo construiu uma obra diversificada que trabalha com a estética do absurdo e do fantástico, faz releituras de tragédias gregas, crítica política e teatro infantil. Suas peças mais destacadas são Quem Roubou Meu Anabela?, Sexta-Feira das Paixões, peças O Macaco e a Velha, Cabaré de Maria Elefante, Boi dos Chifres de Ouro, Mulheres Mix e Trilogia Perversa.

Com o lançamento, em 1988, da Trilogia Perversa, inspirada em alguns dos mais conhecidos mitos gregos, Bender inaugurou nova fase de sua carreira de dramaturgo. Em 1826, o mito de Atreu e Tiestes é transposto para o contexto dos primórdios da colonização alemã no interior do Rio Grande do Sul. Em 1874, a tragédia Ifigênia em Áulis, de Eurípides, é adaptada para o episódio da matança dos Mucker - colonos alemães reunidos sob a liderança messiânica de Jacobina Maurer. Na peça1941, o mito de Electra dá margem à criação de uma trama ambientada durante a grande enchente de 1941, que devasta o território gaúcho. Trilogia Perversa, talvez a sua principal obra, é uma espécie de revisão do mito trágico, matéria do drama clássico grego adaptado ao clima gaúcho.

Diálogos Espectrais, texto escrito em 2004 e não publicado ainda, tem caráter semiautobiográfico, e conta a história de um tradutor dos poemas de Emily Dickinson que trava contato com o espectro da poeta norte-americana. A exemplo de outros trabalhos, Ivo usa a temática fantástica, porém sem o caráter alegórico de antes, constituindo um texto muito mais intimista e focado na impossível relação de amor entre a autora e o tradutor.

Ivo possui pleno domínio da linguagem dramática, a fluência da sua escrita em gêneros tão distintos quanto a tragédia e a comédia, em uma obra em que se alternam a prolixidade de algumas peças como O Cabaré de Maria Elefante e o discurso enxuto, no limite do indispensável, como na Trilogia Perversa.

Em 2010, Ivo publica seu primeiro livro de narrativas curtas, Contos (L&PM editores). Atualmente, o autor trabalha na conclusão de três novelas que serão reunidas livro a ser publicado nos próximos meses.


Confira abaixo a entrevista feita com o dramaturgo para Fernando Ramos, Clarice Müller e Cláudio Santana.

Paixão pela palavra escrita


Parece piada, mas é verdade. Minha primeira paixão pela palavra foi uma lição na escola, o verso “o menino bate a bola”, com que fui alfabetizado. Ali descobri o valor e a beleza das palavras. Mas não dei muita importância, nessa época tinha 7 anos, e a gente não aquilata muito bem porque está amando determinada frase ou palavra. Achava bonito e ponto. Sempre gostei das palavras que se juntam e formam alguma coisa, com algum sentido. Nessa fase, também desenhava muito, daí que tinha esses dois interesses. Até que descobri o teatro. Isso aconteceu mais tarde. Bom, aí comecei a escrever texto mesmo.

Eu estava muito embalado, influenciado, digamos assim, pelo teatro do absurdo. Mas havia uma coisa dentro de mim, que era um resto de colono alemão. Todos os meus parentes eram colonos do interior, passei a minha infância no meio colonial, em meio a lavouras, pomares, jardins, fornos onde se assavam pães aos sábados de tarde. Ouvia histórias, como por exemplo, a história dos muckers. Os meus pais falavam com os meus tios da coisa terrível que tinha sido o movimento mucker para aqueles que não optassem pela seita. Falava-se das suspeitas de infanticídios cometidos pelos muckers para os que não seguissem a seita. Isso, mais tarde, ficou claro que não era verdade. Era uma maneira de denegrir esse movimento. Lembro de ouvir também a história de um homem que, em Estação Portão, onde eu tinha parentes, morava próximo da estação do trem e que tinha uma pensão onde ele acolhia os viajantes e que ele assassinava esses mascates para ficar com os seus produtos. Tudo isso eu ouvia, mas fazia de conta que não, porque criança não podia ouvir certas coisas.

Meu imaginário tem tudo isso amalgamado, uma espécie de tecido em que essas memórias se cruzam. E uma coisa muito importante: a minha mãe, que mal falava português, lia pra gente os contos dos irmãos Grimm. Essas histórias assustadoras tinham uma importância fundamental para mim. Outra coisa importante foi meu contato com a natureza – campos, bosques, montanhas, açudes, pomares carregados de frutas, jardins. Isso é a base de tudo.

Quanto à leitura propriamente dita: nessa fase ainda não conseguia ler sozinho esses contos.

Escola


Terminei o primário e queria ingressar no ginásio, mas não tinha recurso financeiro. Colégio Sinodal, em que eu queria estudar era caríssimo, tinha gente de vários lugares estudando lá, de outros países inclusive. As grandes famílias de ascendência alemã mandavam seus filhos pra lá. Tive a idéia de procurar o prefeito de São Leopoldo e pedir ajuda para entrar no colégio. Eu e meu amiguinho Flávio vestimos nossas melhores roupas e fomos atrás do prefeito. Conseguimos bolsa com o prefeito. Havia aula de manhã e de tarde, menos quarta-feira e sábado. A gente podia escolher, na primeira série ginasial, entre Grego ou Alemão. Estudei quatro anos no Sinodal, e todo final de ano apresentava o boletim ao prefeito Sperb, conforme ele havia solicitado. Nesse colégio fiz o primeiro do curso clássico e, depois, vim pra Porto Alegre para estudar no colégio Júlio de Castilhos.

Primeiras peças e contexto político  


Cursava didática na Faculdade de Filosofia e estava meio perdido. A Lúcia Mello, do Curso de Arte Dramática, me pediu uma peça. Escrevi durante uma aula a peça “Cartas marcadas”, minha estréia no teatro. Foi encenada numa formatura no Centro Acadêmico da Faculdade de Filosofia e foi bem recebida pelo público. Isso me animou a produzir mais. Lúcia foi fundamental para mim, ela que acionou meus dons e fantasias. Escrevi, em seguida, uma coisa chamada “Terra devorada”, que era uma confusão lírica das piores, eu próprio não entendo o que era aquilo, absolutamente hermético que é. Ainda bem que esse texto se perdeu. Aconteceu uma coisa terrível pouco tempo depois: vieram os militares. Aí foi um problema: se tinha disciplina imposta, progresso nem tanto, e muita coerção. Era uma coisa bastante difícil de se lidar. Quando fiz “Queridíssimo canalha” situei a ação num país insular, tropical, onde um gângster vai galgando o poder com o objetivo de se tornar presidente da república. Era uma metáfora da escalada dos militares ao poder, aquela coisa de não recuar ante nenhum crime, assassinato, seqüestro ou homicídio, nada. Tava dirigindo uma peça, isso foi em 1968, era um auto de natal, no elenco tinha o Raul Machado, Maria de Lourdes Agnostopoulos, Pedro Machado, Luis Damasceno e outros, e estávamos com tudo pronto – cenário, figurino, etc -, quando recebo um telefonema da minha sobrinha, dizendo que havia dois homens da polícia federal que queriam me entregar uma carta. Era uma carta de interdição do texto, que ficava, então, proibido para todo o território nacional. Perdemos a estréia, temporada, todo o trabalho enfim.

Em outra ocasião, estava trabalhando no Instituto Estadual do Livro, chefiando um grupo de pareceristas de um concurso nacional de dramaturgia. O texto premiado era de um escritor paulistano, uma comédia muito engraçada que metaforicamente brincava com o regime militar. De repente, veio uma comunicação da Secretaria de Cultura do Estado mandando cancelar o concurso. O premiado já estava anunciado, havia sido divulgado inclusive no jornal. O secretário de cultura nos chamou para falar sobre o fato, ouvimos um sermão dele. Uma das coisas que ele nos disse foi “eu não vou uma segunda vez ao DOPS (Departamento de Ordem Política e Social, do regime militar) para livrar o rabo de vocês por terem premiado essa peça que fala mal do governo, não se pode falar mal, anulem esse concurso”. Esse secretário, cujo nome não digo, já morreu, sempre viveu em cima do muro e pendendo para o lado do poder. Evidentemente, era um homem de direita. Foi muito chocante e desagradável tudo isso. E serviu de lição: há pessoas em quem não se pode confiar mesmo. Nessa época, em cada sala de aula, em cada faculdade da universidade havia alguma escuta que a gente não sabia quem era. Tudo isso nos deixada numa situação horrível.

Em São Paulo, apareceu uma coisa chamada Feira Paulista de Opinião. O Jairo Andrade, do teatro de Arena, resolveu fazer a Feira Gaúcha de Opinião e me convidou a participar. Fiz um texto chamado “Casa sitiada”. Também estava tudo pronto, e o texto foi proibido. O Marcos Faerman, jornalista, na época do golpe militar, era um dos representantes do Centro Popular de Cultura em Porto Alegre e estava organizando uma jornada de teatro para levar às vilas populares e me pediu um texto. Escrevi a “Farsa da murse estrangeira”. Dei pra ele o texto e daí estourou o golpe. Pensei: agora vou ser preso. O Marcos era de esquerda, jornalista visado. Tive de ir na casa dele para sumir com o texto. Cheguei lá, fui atendido pela mãe do Marcos que, me vendo meio de cara assustada, me perguntou quem eu era, falei que estava trabalhando com o Marcos, e ela me disse, com tom de voz bem baixinho, “entra no quarto, ele está embaixo da cama”. Coitado do Marcos. Vejam só como eram as coisas.

Poesia e tradução


Eventualmente escrevi poesia. Agora não escrevo mais. Um pouco até por sentir vergonha, pois, depois de traduzir Emily Dickinson, acabo ficando tão impregnado da poesia dela que, se for escrever poesia, acabo escrevendo cópia do que ela escreveu. É tão forte a poesia dessa mulher que acaba contaminando a escrita. O que escrevi de poesia acabei jogando tudo fora. Tinha um romance, escrito nos anos 1960, que também joguei fora. Mas adoro poesia. Há dois poetas pelos quais tenho grande paixão: João Cabral de Melo Neto e Cecília Meireles. Acho que a grande obra da poesia brasileira, sem falarmos em Drummond, Bandeira, claro, é o “Romanceiro da Inconfidência”. Se todos nós lêssemos esse livro inteiro uma vez ao ano, a gente ia ver o país de outra maneira.

O grande Walmir Ayala disse uma vez que o “Romanceiro da Inconfidência” poderia ter sido mais um maçante livro sobre a Inconfidência, porém a asa da beleza alucinara tudo. É, sem dúvida, uma obra-prima. Todo brasileiro tem que ler esse livro. E João Cabral a obra inteira. Nele não há nada dispensável. Obra assustadoramente bela. João Cabral é o único poeta brasileiro, a meu ver, que escreve uma poesia “macha”, ou seja, absolutamente masculina. Hoje em dia não estou lendo quase nada. Não vou ao cinema, nem teatro. Fui ver a Ná Ozzeti, sentado na primeira fila, e não via o rosto dela, via uma nuvem apenas. Minha visão está muito escassa. Não posso ler. Minhas lupas estão todas defasadas. Enxergo muito pouco. Acabo me realimentando do que já li. Me faz falta a leitura. As traduções dos poemas da Dickinson fiz com lupa. No computador, uso a fonte de letra tamanho 48. Os deuses me puxaram o tapete, e eu cai porque não vejo. É um problema grave. Então, releio pela memória, mesmo com as falhas e buracos que a memória tem, o que já li ao longo da vida.

Livro de contos, memórias de infância


São de produção mais recente esses contos do livro. Há neles uma unidade de atmosfera, de clima, de cenário e paisagem. Vivenciei essa atmosfera até a adolescência. Há uma certa luz dupla que incide no clima dos contos. E nas novelas que estou escrevendo levo (não gosto dessa palavra, mas em todo caso vai ela) ao paroxismo essa questão da paisagem, atmosfera, das coisas que rompem determinado momento, causam um corte numa situação. Então, me remeto as primeiras histórias que ouvi, histórias em que havia fantasmas, bruxas, espectros, bichos que falavam.

Lembro que estava no trem que me levava do aeroporto de Frankfurt para o centro da cidade, sentado na janela, era um final de tarde, e esse trem passa por entre colinas onde havia bosques, árvores sem nenhuma folha, naquele período logo ia começar a nevar, e vi a lua cheia por trás dos galhos das árvores, e pensei que só num país localizado naquela região é que poderiam ter surgido essas histórias de gnomos, bruxas, duendes, ninfas, etc. Porque aquela lua tinha, digamos assim, um feitiço e uma certa ameaça de terror através daquela floresta que ela iluminava. Só podia ser ali que surgiria essa coleção de contos dos Grimm. Acho que nessas histórias dos meus contos há algo a ver com esse passado remoto em que a minha mãe lia, em alemão, essas histórias depois do almoço à sombra de um bosque que havia perto de nossa casa, em Dois Irmãos, onde morávamos. Uma coisa está ligada estreitamente a outra.

Manias e processo criativo


É bem difícil falar sobre processo criativo. Nunca estou parado. Por exemplo, alguns poemas que traduzi da Dickinson os traduzi caminhando no Parcão. Acho que tudo é uma mistura de coisas que acabam formando os motivos com os quais posteriormente se trabalha na obra. Estou sempre trabalhando. Agora tenho um projeto de escrever 3 ou 5 novelas para um livro. Duas delas estão prontas. Mas tentando te responder: só vou para a escrita no computador quando o conto ou a peça estão prontos na minha cabeça. Fico maturando até estar pronto na cabeça, só então vou ao computador e aí o conto se escreve por si próprio, nasce sozinho. Não há muito esforço. Ele rola. Sai e vai preenchendo as páginas. De repente, todo ele está ali. Então, aí é que entra o autor para por um pouco de ordem no cabaré. Costumo dizer que é a fase da capina: tira daqui, corta dali, etc e vai dando formato ao texto. É como fazer pão: reúne todos os ingredientes, mistura, amassa, e na forma crua monta-se o pão e põe-se no forno para assar e está pronto.

Com uma peça é um pouco diferente. Também tenho a peça toda escrita dentro da cabeça mas há um perigo porque tem-se que estar muito atento para a carpintaria da escrita. Algo que foi dito em determinado momento tem que ter o seu resultado em outra situação, numa cena tal. E um personagem que às vezes vai se deslocar na cena, no sentido físico mesmo, tem que ser parado ou conduzido pra outro lugar. Toda essa construção é feita com a cabeça a mil, presa ali naquele momento presente da criação. Não deixando, digamos assim, as coisas escorrerem para os lados. Essa constante atenção para a arquitetura da peça te acompanha na construção do drama ou da comédia. E no conto não precisa ser assim. O conto prescinde do diálogo e tem o ponto de vista do narrador, é muito mais fácil de trabalhar. O conto se escreve sozinho, a peça não. A peça tem que ser levada com rédea curta, se não desanda ou não acontece.


Teatro, ação dramática


É muito mais fácil escrever conto e novela do que teatro. No teatro entra o imponderável, que é a ação dramática, algo que ninguém sabe, ninguém viu, mas existe e que é a espinha dorsal da peça. Hoje em dia, as platéias entram em coma profundo porque as peças não possuem ação, e as pessoas adormecem. Em algumas, só falta chegar um “lanterninha” para cutucar as pessoas, avisando que a peça terminou. Por que isso? Porque tem uma bobagem chamada pós-moderno. A pessoa que vai ao teatro, pra começar, já está com a cabeça feita. Olhe que já fiz textos para teatro visando à revolução. A gente pode discutir certas coisas com o público. Mas, por exemplo, guerrilha se faz no campo, no palco não funciona. Isso aprendi, foi difícil mas aprendi. As pessoas saem do teatro e vão encher a barriga num bom restaurante, ou tomar um sorvete, dormir, fazer sexo, qualquer coisa, menos revolução. Estou exagerando um pouco, claro. Mas acho que uma peça funciona quando segue um modelo no qual o dramaturgo expõe um problema ou conta alguma coisa para o público com ação. Porque sem ação, há um coma profundo na platéia, ou as pessoas se levantam e vão embora, o que é pior. Melhor uma platéia adormecida do que uma platéia levantando para ir embora no meio da peça.