Com dezenas de livros lançados e traduzidos ao redor do
mundo, o argentino César Aira tratou de desfazer a imagem de escritor prolífico e abalar qualquer outra certeza que se pudesse ter a respeito de sua obra em entrevista ao escritor Joca Reiners Terron. O encontro aconteceu na Casa de Cultura Mario Quintana, com o auditório lotado e atento. Confira abaixo os melhores trechos dessa conversa:
Influência brasileira
Traduzi Sérgio Sant’Ana, e acontece dos tradutores se
aprofundarem nos livros e vê-los em tudo que têm de espetacular. Por isso,
gostaria de seguir traduzindo O vôo da
madrugada. Há um fundo dramático especial na literatura do Sérgio, um
espanto, um horror, um peso em seguir vivendo. Sobretudo O vôo da madrugada tem isso, inclusive porque foi escrito em meio a
uma crise pessoal.
Para mim, a literatura brasileira é a mais rica do
continente sul-americano. Foi até mesmo um problema para mim quando li
Guimarães Rosa: era um escritor tão monumental, tão grande, que me deixou
desolada, que não valeria tentar escrever, juma vez que jamais seria capaz de
fazer algo como Guimarães.
Dalton Trevisan também segue sendo um dos meus favoritos. Mas
João Gilberto Noll, passou por mim e foi tão aterrador como Guimarães Rosa.
Pensei: eu deveria ter escrito aquilo. Não sei como me exorcizar essa sensação
agora, sobretudo a sensação que veio a partir de A fúria do corpo – espero que algum tradutor argentino consiga
fazer justiça a esse trabalho.
Escrever = desenhar
Tudo que escrevo tem um componente visual muito grande,
intuitivamente busco que o leitor veja o que vejo na minha imaginação. Por isso
uso a linguagem mais neutra possível.
Escrevo muito pouco e muito lentamente – um parágrafo ou
dois, no máximo meia página por dia. Mas como os dias são muitos e os meus livros
são curtos, não há problema. Comigo me parece mais como um desenho, tenho papéis
chineses bons, canetas... São imagens que vou descrevendo. Para mim, me parece
mais com o ato de desenhar do que
escrever.
Exige um método? Não sei. Eu muitas vezes, quando estou
escrevendo, improvisando, me dou conta de que cometo erros, me meto em becos
sem saída, mas sempre tenho a confiança de que no fim tudo vai dar certo por fé
na literatura. A literatura é quase como uma deusa que protege os escritores.
Qualquer um pode escrever muito. Literatura é uma questão de
qualidade e não de quantidade. Sou ruim com os editores, que querem que
acompanhem a confecção do livro. Quando entrego o livro a eles, digo que façam
o que quiserem com a capa, com a tipografia...
Nunca tive muita confiança em mim mesmo. Sempre que termino alguma coisa,
penso: que desastre eu fiz! E gosto muito das editoras pequenas, me dá vergonha
de mandar a editores grandes. Na Argentina tudo é grátis, você praticamente dá
os livros aos editores, mas aí vem os editores alemães e me compram. Então fico
com o melhor dos dois mundos: a boemia do autor jovem, e o reconhecimento
exterior que rende dinheiro.
No discurso público, nunca se fala como literatura como uma
atividade artística, parece sempre visto como um nobre veículo de idéias e
ideologias. Só quando encontro autores de verdade é que me volta essa sensação
de atividade artística. O romance não é um veículo para valores, é injusto com
a literatura que a usem como um mero veículo de prestígio para ideologia,
porque esse prestígio vem de autores que não estavam preocupados com isso, como
Kafka ou Borges.
Agora tem essa onda de fazer romances dedicados aos dramas
que aconteceram durante a ditadura militar. É um modo de ganhar dinheiro que me
parece obsceno, pois é fazer dinheiro com quem sofreu tanto.
Aprender a escrever
Por que escrever? Não há resposta diferente de “porque quis”,
“porque sim”, “porque não gosto de trabalhar”. Há tantos modos engenhosos de
responder, mas são todos mentirosos.
Como escrever? Escrever bem, é a única resposta. Por que algumas
pessoas ruins têm talento e escrevem bem, e outras honestas não? Acho isso um
pouco injusto. Oficinas literárias podem ensinar a escrever bem, mas não a
escrever. Escrever é uma decisão vital. Escrever, no sentido forte, é outra
coisa que não há oficina que consiga ensinar.
O que escrever? Também há uma armadilha aí: não se pode buscar
o que não podemos fazer, o que não nascemos para fazer. Lembro de um amigo meu
que tinha nascido como poeta, tinha todas as características de poeta, como se
pegar à palavra com tanto amor que muitas vezes não consegue pensar de um modo
mais raciona, mas ele tentou ser crítico literário. Acabou não sendo nada.
Virou publicitário. É preciso tomar cuidado consigo mesmo, somos nossos maiores
inimigos na hora de escrever.
Fotos: Ana Mendes
Fotos: Ana Mendes