23 de set. de 2012

Entrevista: Juarez Guedes Cruz e Leila Teixeira


Juarez, nota-se que os livros de vocês ("Antes que os espelhos se tornem opacos" e "Em que coincidentemente se reincide") foram concebidos como projetos bem estruturados. Um pouco dos conceitos dos livros, que aqui, bem genericamente, sitentizo nas expressões "espelhamentos" e "reincidências", são comuns aos dois livros. Vocês.podem comentar um pouco como foram pensados esses conceitos e as principais temáticas dos livros?
O meu ‘Antes que os espelhos se tornem opacos’ não foi concebido como projeto bem estruturado. Pelo menos, não intencionalmente. Escrevi os contos que fazem parte dele ao longo de cinco anos, não na ordem em que aparecem no livro. A sequência foi estabelecida posteriormente, ouvindo a opinião do editor na maior parte do tempo. Inclusive, dois ou três contos que faziam parte da primeira versão do livro, foram excluídos por serem muito diferentes, em termos de temática, dos demais contos. Pensando agora, depois das conversas com o editor e com amigos, até identifico uma temática central relacionada com a elaboração de perdas. Mas isso não fazia parte de um projeto literário. Era uma situação pessoal sendo sofrida e elaborada.  
     
O bom conto é aquele que provoca o que no leitor?
O sentimento profundo que, em mim, deu origem ao conto. Sinto-me realizado quando um leitor me descreve que a sensação que teve, ao ler a minha narrativa, foi muito semelhante à emoção que eu tinha quando ela, ou parte dela, surgiu na minha mente. Pra mim, é sinal de que, literariamente, funcionou. 
  
Cite um conto inesquecível ou perfeito. Qual impacto a leitura desse conto te causou?
‘A continuidade dos parques’, do Cortázar. A leitura desse conto me provocou, na primeira vez, uma sensação de vertigem. A impressionante falta de limites entre o que é real e o que é fantasia, entre externo e interno, entre lógico e ilógico. 
   
Juarez, o que se altera no teu trabalho de um livro para o outro?
Nada que eu possa detectar. Aliás, acho importante que pouco me influencie o sucesso ou insucesso do livro e das demais coisas da vida. No momento que ficar muito preocupado com isso, com elogios ou com críticas, perco a liberdade. Meu estado de ânimo com relação a um possível próximo livro, é de curiosidade. O que será que vem por aí?

Vocês escolheram quais contos para lerem no encontro? Podem nos mostrar aqui um trecho desses contos?
Escolhi ‘Projeto Parmênides’ e ‘Cento e vinte’.

Trechos:
“Ao mesmo tempo em que se despedia do corpo de sua querida, pouco antes do ritual de cremação, Bernardo consolou-se ao saber que, já no dia seguinte, os nanotecnólogos do Centro dariam início à produção da nova Beatriz. Igual à Beatriz perdida. Felicitou-se pela sorte de viver em um século no qual, graças ao tremendo progresso da biologia sintética, os cientistas tinham se tornado capazes de competir com a Criação, aperfeiçoar aquilo que a natureza iniciara de modo casual e errático, seguindo os azares das mutações. Gerado o corpo, a partir de uma única célula do doador, bastava realizar a transferência, para o clone, do repertório de pensamentos e afetos previamente armazenados, e qualquer um podia ter de volta a sua Lenore, com todas as características da morta. Se é que, a essa altura, ainda se poderia falar em morte, pois o duplo era, física e psicologicamente, igual à pessoa amada” (Projeto Parmênides).


“Pensará que é uma filigrana, um triste consolo, uma afetação, imaginar um conto sobre o que está acontecendo nesse momento, quando uma criança morre de fome no mundo a cada três segundos. E você se sentirá tão fútil. Não, não se sentirá, mas é fútil, ao alinhar palavras, enquanto mais algumas, você não quer mais contar, mais algumas crianças acabaram de morrer. E você até inventa alguns argumentos de que é pura seleção natural, que, se tivessem pais responsáveis não acabariam se tornando os ladrões, os traficantes, os subnutridos e os assassinos que vão se tornar, então é melhor que morram. Mas isso só para você poder acabar seu conto em paz, sentindo-se honesto e não fazendo parte desse negócio horrível de coletores de cadáveres e moedores de ossos. Anime-se, afinal, não há o que fazer. Até há, mas você não sabe, ou não quer saber, quer mais é continuar na sua vida, ganhar seu dinheiro, escrever seus contos e até pensar que o fato de escrever esse texto é ser útil, coisa que você, positivamente, não é” (Cento e vinte).


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Leila, nota-se que os livros de vocês ("Antes que os espelhos se tornem opacos" e "Em que coincidentemente se reincide") foram concebidos como projetos bem estruturados. Um pouco dos conceitos dos livros, que aqui, bem genericamente, sitentizo nas expressões "espelhamentos" e "reincidências", são comuns aos dois livros. Vocês.podem comentar um pouco como foram pensados esses conceitos e as principais temáticas dos livros?
Durante o tempo em que estava escrevendo, as reincidências surgiram de forma natural e, depois, é que viraram parte de um projeto propriamente dito. Temas ou personagens de contos que eu já havia escrito voltaram a aparecer na escritura de novos contos. Então, pensei que esses elementos reincidentes poderiam estar conectados dentro de um mesmo livro. A opção pelo espelhamento foi a que entendi mais adequada ao material que eu já tinha pronto na época em que surgiu a ideia do "Em que coincidentemente se reincide" como ele é. Os contos da primeira parte estão refletidos nos da segunda parte. O conto central liga-se a todos os demais, pois contém as temáticas que, de uma forma ou de outra, estão presentes no resto do livro: o deslumbramento com a vida; a consciência da morte; a arte como alento; a solidão inerente a cada indivíduo; a impossibilidade de alterar o fim da nossa história.

O bom conto é aquele que provoca o que no leitor?
Vou usar as palavras do Julio Cortázar, pois traduzem muito bem o que penso sobre o efeito de um bom conto no leitor. "Todo conto perdurável é como a semente onde dorme a árvore gigantesca. Essa árvore crescerá em nós, inscreverá seu nome em nossa memória".

Cite um conto inesquecível ou perfeito. Qual impacto a leitura desse conto te causou?
Sou apaixonada pelo conto, esse "caracol da linguagem, irmão misterioso da poesia em outra dimensão do tempo literário" (de novo, Cortázar). Então, não conseguiria falar em um conto apenas. Posso citar uma lista, escolhendo injustamente apenas um conto de cada autor que mais gosto, mas um só é impossível. "Auto-estrada do sul" (Julio Cortázar), "O sul" (Jorge Luis Borges), "Episódio africano" (Ernest Hemingway), "Morte por saudades" (Enrique Vilamatas), "Dançar tango em Porto Alegre" (Sérgio Faraco), "Bliss" (Katherine Mansfield), "Tango" (Juarez Guedes Cruz). Qualquer um deles teve o mesmo efeito sobre mim. Após encerrar a leitura, ao voltar para a minha vida, para a minha rotina, a história continuou (e continua) reverberando dentro de mim. Porque a vivência lá daqueles personagens é algo maior, que pertence a toda humanidade, e que, portanto, diz respeito a mim também. Em outras palavras, qualquer um desses contos contém um história que se apresenta como específica, mas, que, na verdade, é universal.

Leila, o que se altera no teu trabalho de um livro para o outro?
Acho que não. Escrever continua sendo um misto de prazer e de dificuldade (levei cinco anos escrevendo este livro). 

Vocês escolheram quais contos para lerem no encontro? Podem nos mostrar aqui um trecho desses contos?
Escolhi "Noctiluca". O conto central do livro.

Trecho:
"Preciso manter a calma enquanto lhe escrevo. Para falar tudo o que tenho para falar. Mas jogo tudo assim no papel. Direto. Caótico. Porque, se tivesse que trabalhar a palavra, lhe entregaria uma folha em branco. Nada que se descreva ou se diga é capaz de conter o que realmente se vê. O que se vê é indizível. Impronunciável. O que há simplesmente há. E não pode ser dito. Por isso, vou jogar o caos que impera em mim direto no papel. Sem organizar a disposição dos elementos. Sem procurar o foco certo. Sem medir a luz.


Você me disse que recebeu um bilhete suicida. Realmente. Alguém se matou em São Paulo. Mas não fui eu. Meu problema não é querer me matar. Meu problema é não querer morrer. Quem me dera ter vontade de morrer. Suicídio é apenas o adiantamento do inevitável. O problema é não ter vontade de morrer. Desejar a única coisa que não se pode conseguir. Tentei parar de fumar. Foi porque não quero morrer. Queria distância do que me aproxima da morte. Eu sofro e toda a luz da sua aleluia não conseguiria iluminar a escuridão que me engole nesse meu sofrimento. Eu não quero que eu acabe. Tudo passa, e eu continuo sempre comigo. Você talvez seja a pessoa mais importante da minha vida. E sei que me ama como eu amo você. Mas até você vai passar. Sou o único que continuará sempre comigo. Eu não quero que eu acabe. A consciência é o grande sadismo biológico. “Perceba a aleluia pipocando infinita e ininterruptamente por todos os lados. Mas perceba rápido, pois você nunca mais a verá. Quando você acabar, ela continuará”. Eu tenho este lado escuro de não aceitar. Às vezes, volto para a luz. Você sabe. Se um dia você pintar meu retrato para me eternizar em alguma parede, utilize o claro-escuro. Um claro-escuro dos mais contrastantes. Será meu retrato perfeito.
Eternizar pela arte é uma saída. Não para o inevitável, mas para angústia.  A arte é o anestésico da angústia.
Quando fotografo, tenho a sensação que controlo. Escrevo com a luz, e a minha conjugação do ser não tem pretérito, nem futuro. Tudo apenas é. Na minha fotografia, trapaceio e assumo o papel do tempo, o buraco negro que suga todas as luzes. Roubo do tempo a luz de todos os instantes que posso. Freneticamente, capturo a maior quantidade de instantes-luz possível. E, no breu do meu laboratório, sou o buraco negro reverso. O buraco negro que expele luz. Sou a mãe que dá o filho à escuridão. Meu filho é o instante-luz que ressuscita. Que renasce perpétuo. Gozo da felicidade de pegar nos braços um filho infinito. Mas logo meu regozijo se dissolve na consciência de que o instante é escorregadio e ingrato. Na sua ingratidão, dá-se apenas em parte, em imagem nua, sem som, sem cheiro, sem toque. Volto à medíocre pequenez da passividade. Finda a breve ilusão do controle.
Escrevo desse modo convulso para tentar mostrar a sucessiva e ininterrupta troca entre deslumbramento e decepção de que sou feito. Acendo e apago incessantemente diante do que há. Poderia descrever para sempre a ambigüidade da minha essência, só que a palavra é vã e não consegue exercer sua função.
Não estou acabando por aqui. Apenas desisto da palavra. Desisto dela, mesmo que, sem ela, eu não exista."