O homem se chama Ivo Bender. É também artista. Desde cedo,
aprendeu que a vida concede alguns nomes a cada um de nós. Aceitou-os a fim de
viver humanamente: dramaturgo, professor, contista. Mas, sobretudo, passou a
vida lendo. Aí sim ficou humano, demasiadamente humano.
Pertence à rara estirpe de um Merchior, um Mindlin, um
Hecker, um Voltaire. É a turma da transcendência, de viver para contar. Do
livro fez a sua casa mais permanente. Quer dizer, seu palco de partida e de
chegada, embora faça chover e brilhar em palcos palcos. Está no mundo, literal
e simbolicamente.
Tantas páginas depois, conquistou o direito de leituras
adquiridas: só fazer as próprias linhas. E não deixou de fazê-las, de várias
formas: teatro, palestra, conto, interlocução com todos os seus amigos.
Mas, em parte deste tempo, dedicou-se a traduzir. Tornou-se
um dos tradutores mais contundentes da poeta norte-americana Emily Dickinson.
Ivo a recriou na língua portuguesa, a língua de sua casa, onde hospedou artista
e obra em epifanias como esta:
“Moro na possibilidade/Casa mais bela que a prosa,/Com muito
mais janelas/E bem melhor, pelas portas.”.
Ou: “A memória tem frente e fundos/Como se fosse uma
casa;/Possui até mesmo sótão/Para os refugos e ratos”.
Ou aquela: “Mais seguro é encontrar à meia-noite/Um
fantasma,/Que enfrentar, internamente,/Aquele hóspede mais pálido.”.
Ou ainda aquela: “Perdemos, porque ganhamos–/Sabendo disso,
os jogadores/Lançam seus dados de novo!”.
São muitas, todas comovem, ao casar som e sentido. Emily
sente-se em casa, e temos o prazer de visitá-la quando quisermos. A literatura
tem disso, estar presente durante as ausências. Quanto ao Ivo, pela
quilometragem de leitura, poderia dar-se ao luxo de ausentar-se na escuta. Ou
nos seus escritos. Deter-se em frases particulares ou nas melodias em comum das
vozes. Não o fez e nos presenteia com o alheio.
Este, sim, entendeu aquele que pode ser o significado maior
de uma literatura: conceder-nos a humildade de sair do próprio silêncio para
mergulhar na palavra do outro. E, sem abandonar o lugar físico, voltar ainda
mais expressivo e verdadeiro. Para um espaço, aí sim, infinito.
Texto inédito do poeta Celso Gutfreind, escrito em homenagem a Ivo Bender.