Anos
oitenta. O João Gilberto Noll já tinha publicado os contos de O Cego e a Dançarina, cuja narrativa Alguma coisa urgentemente virou filme
com direito a prêmio em Gramado. O denso romance A Fúria do Corpo, com seus mendigos em Copacabana, circulava muito
bem. Seus direitos para o cinema tinham sido adquiridos por Hector Babenco. O
Noll começava a brilhar.
Eu era
um adolescente, lia muito e, por isso, freqüentava a livraria Sulina na Borges
de Medeiros. Foi lá que encontrei o Noll, eu folheava a Poesia Completa do
Manuel Bandeira, e ele, uma Clarice Lispector, que já tinha relido umas dez
vezes Apresentei-me sem timidez e o chamei para escrever o prefácio de um livro
de poemas que levaria uns dois anos para terminar. Antes disso, tornamo-nos
amigos, ele foi à minha formatura na faculdade de medicina e colecionamos
histórias. Seleciono duas para a antologia desta crônica.
Na
primeira tínhamos ido a Gramado, com o poeta carioca Maurício Salles, que
decidiu ficar por lá. Noll e eu voltamos no Corcel azul do meu pai e, naquele
tempo, pneus furavam com freqüência. Não deu outra, na curva fechada de
Igrejinha, e fui trocar. Mas tinha que ficar com o corpo para dentro da estrada,
e ao Noll coube avisar quando vinha carro.
Ele
avisava, mas, de olho na próxima novela, que beirava a sua cabeça, demorava a
prevenir-me. Quase fui atropelado umas três vezes, uma delas por um caminhão
que já tinha tirado fininho do Noll e da novela.
Sobrevivemos
e, dias depois, ele me ligou porque estava preocupado com um sinal na pele, que
gostaria de retirar. Eu fazia estágio de cirurgia na Santa Casa e disse que
daria um jeito. O Noll foi lá, menos pelo sinal e mais porque desejava pôr o
estabelecimento em uma das cenas do seu próximo livro. Estava tão atento ao
cenário que nem se deu conta da notícia: contratados e residentes estavam em
greve e não tinha ninguém para realizar o procedimento.
Foi
quando a enfermeira propôs que eu mesmo fizesse. Expliquei para ela que estava
acostumado a suturar, não operar. Ela me disse que quem costurava, cortava, era
a mesma coisa. Perguntei ao Noll se ele topava, e ele, de olho nas balaustradas
do pátio interno e mais distraído que na curva, topou.
Foi
assim que fiz a minha primeira cirurgia. E a última, antes de me tornar
psiquiatra.
O
paciente sobreviveu, confirma-o a bela
obra que vem compondo. Eu mesmo retirei os pontos, uma semana depois. Bem no
dia em que me entregou os originais de Rastros
de Verão, novela frenética que se passa no calor de Porto Alegre em
fevereiro. Um dos personagens era um poeta maluco, e o Noll falou que era eu.
Sim,
éramos malucos, entre o asfalto e a maca. A vida nos cansava com freqüência,
mas nos livros conseguíamos repousar. Para sempre.
Texto escrito pelo poeta Celso Gutfreind em homenagem a João Gilberto Noll, publicado no livro "Dança das palavras".