O marido no chuveiro
Da primeira vez foi o síndico que me mostrou. Bebíamos umas cervejas, e
ele tinha acabado de abrir dois pacotes de salgadinho quando disse que o marido
dela não saía do chuveiro.
Ela tinha descido para a piscina de maiô antigo, creme, e vinha com uma
toalha enrolada na cintura. Não era ruim de corpo, concordei com o síndico,
apenas que o maiô escondia muito. Ela vem todo santo dia, senta numa cadeira e
toma sol nas pernas. Nunca entra na piscina, ele disse, e na mesma hora, lá da
janela do terceiro andar, dava pra ver os efeitos da água do chuveiro, fraca
mas constante, sobre o marido. Eu disse que ele era síndico, podia descobrir.
Mas ele advertiu que não se preocupava com a vida dos outros. Tive de rir e
pagar mais uma cerveja.
Dali em diante, reparei de fato: a água corria no terceiro andar até
durante a noite. Às sete eu saía para a faculdade e, descendo do quinto, era
possível ouvir o chuveiro já ligado. Eu tomava o lotação até o Centro, estudava
a manhã inteira, representando personagens mais maduras que eu. Voltava ao
meio-dia, e o marido continuava no banho. Não a via sair, mas o síndico me
dizia que ela ia às vezes ao mercado, às vezes à padaria, sempre de saia ou
vestido compridos. Gostava de mostrar as pernas, comentava o síndico.
Numa sexta-feira, ela saiu de vestido de jeans e a segui até o mercado.
Ela pegou limões, e forcei para montar fila com ela. Saímos quase juntos.
Cruzamos a rua quase juntos. Juntos enfim no prédio. Então, como ela me
perguntasse E enfim?, me olhou. Perguntei se precisava de ajuda. Ela disse que
era só uma sacola, e sorri sem jeito. Caminhávamos lado a lado, rente à
piscina, quando ela me perguntou, muito séria, se me incomodava o barulho do
chuveiro, e eu disse que não, afinal moravam no terceiro e eu, no quinto. Ela
confessou, encarando a porta do elevador, Meu marido precisa do chuveiro por
horas. Comentei que deviam gastar muita luz. Só água, ela respondeu.
Contei ao síndico que o marido não precisava de banho quente, e ele
desatou a rir. Fiquei sem entender. A mulher com umas pernas daquelas, e o
sujeito tomava então banho gelado, era? E voltou a rir.
No sábado à noite, estreávamos uma montagem universitária de Marat. O
teatro não estava lotado, mas éramos atores iniciantes, e por isso não reclamávamos
do pouco público. Sobretudo eu, que a avistei na terceira fila, usando um
vestido amarelo. Foi no momento em que eu cobrava de Marat Sade que saísse da
banheira e cumprisse a revolução. E ele saiu: virou as costas ao público e, num
recorte retangular da calça, mostrou sarcasticamente a bunda. E nos retiramos
de cena apontando com deboche para os espectadores da primeira fila, aos risos.
Os aplausos não foram entusiasmados. Mas tínhamos estreado, enfim, e agora
algumas pessoas vinham à beira do palco conversar conosco, com o diretor e o
Marat, sobretudo, inclusive um jornalista local. Muitos parentes. Eu não tinha
ninguém e vi que ela saía discretamente da plateia. Alcancei-a na última fila
e, sem ter o que dizer, perguntei pelo marido. No chuveiro, ela respondeu.
Ficamos em silêncio e então ela disse Vi o cartaz da peça na recepção do
edifício. Não sabia que era ator. Estudo para isso, eu disse. Esteve bem, mas a
peça é triste. Pensei no marido dela dentro de um banheiro a curar feridas com
água gelada e disse que sim, que a peça era muito triste, mas era a história,
enfim. E surpreendentemente ela pegou nas minhas mãos. Parecia angustiada.
Precisa de alguma coisa?, perguntei. Ela queria dizer que sim e não conseguia.
Aquilo me encorajou. Ela brilhava de suor no rosto, o vestido caía certo, e me
iludi que era por minha causa. Me espera? Ela apertou minhas mãos, e fez que
sim e fui ao camarim me trocar. Havia champanha trazida pelo pessoal da contrarregra.
Mas fui rápido: não bebi nada, arrumei meu figurino, me despedi discretamente e
fui procurá-la.
Encontrei a mulher sentada numa das mesas de janela do bar do teatro.
Tomava tequila, e estranhei, Tequila? E ela respondeu que não parecia, mas era
jovem, e eu me senti envergonhado e disse que não tinha sido aquele o sentido e
me sentei e pedi tequila para mim também. Bebemos muitas, ela sempre exagerando
no sal e no limão. Sem comer nada, meu estômago ardia. Completamente tontos,
ríamos à toa e apertávamos as mãos. Perguntei ainda pelo marido, e ela me deu um
beijo e entendi que ele estava no chuveiro. Com a língua, ela parecia me raspar
o céu da boca. Pagamos a conta e pegamos um táxi, e ela ordenou que o motorista
fosse até o edifício, e eu queria dizer que não, mas ela me beijava sem que eu
pudesse falar. Eu me sentia mole, a garganta e a boca ardendo, e, embriagado,
deixei que me levasse.
Entramos no edifício separados: primeiro ela que, discreta, subiu até o
apartamento onde o chuveiro estava ligado. Cinco minutos depois eu entrava.
Subi as escadas, e ela me esperava no terceiro piso, puxando-me por uma mão. O
marido?, cochichei no ouvido, e ela me apontou para o banheiro, que estava de
porta entreaberta. Havia uma atmosfera úmida e um cheiro evidente de bolor. Ela
foi à cozinha e voltou trazendo duas taças cheias. No primeiro gole, tudo me
ardeu na boca e perguntei se aquilo era xerez, e ela me beijava o pescoço sem
responder. Parece vinagre, eu disse, e ela terminou de beber e bebi mais dois
goles, arranhando a garganta, e então ela tirou a taça da minha mão e colocou
sobre a pia do banheiro, e com os olhos busquei o marido, mas o que eu via era
a porta do box embaçada, e ela me arrastou ao
quarto, que estava na penumbra, e começamos a tirar a roupa, e eu pensando que
não havia marido nenhum e deitamos na cama, eu por baixo.
Ela cavalgava fazendo movimentos intensos com o sexo, como se os lábios
tivessem dedos que me mastigassem. Não durei muito tempo, tapando com a boca um
orgasmo que ela veio colher com uma língua agressiva. O gosto de vinagre me
azedava. E dentro dela dedos ásperos começavam a erguer novamente um homem que
eu não conhecia em mim. Não
sei por quanto tempo fizemos aquilo, porque eu tinha orgasmos que pareciam
desmaios e imediatamente sentia que as mãos do sexo dela arrancavam outro homem
de dentro de mim e outra vida renascia, e os olhos iam recuperando as coisas
que recomeçavam. Até um fim. Eu não conseguia me erguer ou falar. Apenas ouvia
o chuveiro constante, sem outros ruídos. Naquela hipnose, dormi.
Acordei com a sensação de que minhas virilhas pegavam fogo. Minhas pernas
formigavam, mas, com a ajuda dos braços, consegui me sentar na cama e
acordá-la. Como se ela entendesse, correu a acender a luz de um abajur. Tentei
me levantar, mas caí de joelhos, e vi que meu sexo estava coberto de uma
farinha e ardia como fogo. Rápida, ela me levou ao banheiro, me fez sentar no
bidê e, tirando um aparelho elétrico da última gaveta, rapou meus pelos. Dizia
que ainda dava tempo, ainda dava tempo. Tempo de quê?, eu pensava, mas ela já
despejava o líquido da minha taça sobre o meu sexo, esfregando forte com as
mãos e soprando ao mesmo tempo. Urrei de dor.
Ninguém no edifício poderia ter fingido que não ouviu. Eu tinha quase
desmaiado, meus olhos lacrimejavam abundantemente, e vertia água das minhas
carnes. Mas eu precisava sair dali. Ela trouxe as minhas roupas, e eu me vesti
com muitas dificuldades, sobretudo nas calças. Ela já se vestia para me ajudar
a sair, porém eu tinha ainda algo a fazer: sentindo que eu me dissolvia pelas
pernas, abri o box – da porta do banheiro ela gritou O meu marido! –, mas só o
que vi foi o chuveiro despejando água sobre uma banheira de louça coberta por
cogumelos e bolores de cores estranhas, em alguns dos quais cresciam pelos que
pareciam de gente.
Este conto de Altair Martins foi publicado na coletânea O melhor da festa 3, publicação da 4ª edição da FestiPoa Literária.