20 de jan. de 2013

Conto de Altair Martins


O marido no chuveiro

Da primeira vez foi o síndico que me mostrou. Bebíamos umas cervejas, e ele tinha acabado de abrir dois pacotes de salgadinho quando disse que o marido dela não saía do chuveiro.
Ela tinha descido para a piscina de maiô antigo, creme, e vinha com uma toalha enrolada na cintura. Não era ruim de corpo, concordei com o síndico, apenas que o maiô escondia muito. Ela vem todo santo dia, senta numa cadeira e toma sol nas pernas. Nunca entra na piscina, ele disse, e na mesma hora, lá da janela do terceiro andar, dava pra ver os efeitos da água do chuveiro, fraca mas constante, sobre o marido. Eu disse que ele era síndico, podia descobrir. Mas ele advertiu que não se preocupava com a vida dos outros. Tive de rir e pagar mais uma cerveja.
Dali em diante, reparei de fato: a água corria no terceiro andar até durante a noite. Às sete eu saía para a faculdade e, descendo do quinto, era possível ouvir o chuveiro já ligado. Eu tomava o lotação até o Centro, estudava a manhã inteira, representando personagens mais maduras que eu. Voltava ao meio-dia, e o marido continuava no banho. Não a via sair, mas o síndico me dizia que ela ia às vezes ao mercado, às vezes à padaria, sempre de saia ou vestido compridos. Gostava de mostrar as pernas, comentava o síndico.
Numa sexta-feira, ela saiu de vestido de jeans e a segui até o mercado. Ela pegou limões, e forcei para montar fila com ela. Saímos quase juntos. Cruzamos a rua quase juntos. Juntos enfim no prédio. Então, como ela me perguntasse E enfim?, me olhou. Perguntei se precisava de ajuda. Ela disse que era só uma sacola, e sorri sem jeito. Caminhávamos lado a lado, rente à piscina, quando ela me perguntou, muito séria, se me incomodava o barulho do chuveiro, e eu disse que não, afinal moravam no terceiro e eu, no quinto. Ela confessou, encarando a porta do elevador, Meu marido precisa do chuveiro por horas. Comentei que deviam gastar muita luz. Só água, ela respondeu.
Contei ao síndico que o marido não precisava de banho quente, e ele desatou a rir. Fiquei sem entender. A mulher com umas pernas daquelas, e o sujeito tomava então banho gelado, era? E voltou a rir.
No sábado à noite, estreávamos uma montagem universitária de Marat. O teatro não estava lotado, mas éramos atores iniciantes, e por isso não reclamávamos do pouco público. Sobretudo eu, que a avistei na terceira fila, usando um vestido amarelo. Foi no momento em que eu cobrava de Marat Sade que saísse da banheira e cumprisse a revolução. E ele saiu: virou as costas ao público e, num recorte retangular da calça, mostrou sarcasticamente a bunda. E nos retiramos de cena apontando com deboche para os espectadores da primeira fila, aos risos. Os aplausos não foram entusiasmados. Mas tínhamos estreado, enfim, e agora algumas pessoas vinham à beira do palco conversar conosco, com o diretor e o Marat, sobretudo, inclusive um jornalista local. Muitos parentes. Eu não tinha ninguém e vi que ela saía discretamente da plateia. Alcancei-a na última fila e, sem ter o que dizer, perguntei pelo marido. No chuveiro, ela respondeu. Ficamos em silêncio e então ela disse Vi o cartaz da peça na recepção do edifício. Não sabia que era ator. Estudo para isso, eu disse. Esteve bem, mas a peça é triste. Pensei no marido dela dentro de um banheiro a curar feridas com água gelada e disse que sim, que a peça era muito triste, mas era a história, enfim. E surpreendentemente ela pegou nas minhas mãos. Parecia angustiada. Precisa de alguma coisa?, perguntei. Ela queria dizer que sim e não conseguia. Aquilo me encorajou. Ela brilhava de suor no rosto, o vestido caía certo, e me iludi que era por minha causa. Me espera? Ela apertou minhas mãos, e fez que sim e fui ao camarim me trocar. Havia champanha trazida pelo pessoal da contrarregra. Mas fui rápido: não bebi nada, arrumei meu figurino, me despedi discretamente e fui procurá-la.
Encontrei a mulher sentada numa das mesas de janela do bar do teatro. Tomava tequila, e estranhei, Tequila? E ela respondeu que não parecia, mas era jovem, e eu me senti envergonhado e disse que não tinha sido aquele o sentido e me sentei e pedi tequila para mim também. Bebemos muitas, ela sempre exagerando no sal e no limão. Sem comer nada, meu estômago ardia. Completamente tontos, ríamos à toa e apertávamos as mãos. Perguntei ainda pelo marido, e ela me deu um beijo e entendi que ele estava no chuveiro. Com a língua, ela parecia me raspar o céu da boca. Pagamos a conta e pegamos um táxi, e ela ordenou que o motorista fosse até o edifício, e eu queria dizer que não, mas ela me beijava sem que eu pudesse falar. Eu me sentia mole, a garganta e a boca ardendo, e, embriagado, deixei que me levasse.
Entramos no edifício separados: primeiro ela que, discreta, subiu até o apartamento onde o chuveiro estava ligado. Cinco minutos depois eu entrava. Subi as escadas, e ela me esperava no terceiro piso, puxando-me por uma mão. O marido?, cochichei no ouvido, e ela me apontou para o banheiro, que estava de porta entreaberta. Havia uma atmosfera úmida e um cheiro evidente de bolor. Ela foi à cozinha e voltou trazendo duas taças cheias. No primeiro gole, tudo me ardeu na boca e perguntei se aquilo era xerez, e ela me beijava o pescoço sem responder. Parece vinagre, eu disse, e ela terminou de beber e bebi mais dois goles, arranhando a garganta, e então ela tirou a taça da minha mão e colocou sobre a pia do banheiro, e com os olhos busquei o marido, mas o que eu via era a porta do box embaçada, e ela me arrastou ao quarto, que estava na penumbra, e começamos a tirar a roupa, e eu pensando que não havia marido nenhum e deitamos na cama, eu por baixo.
Ela cavalgava fazendo movimentos intensos com o sexo, como se os lábios tivessem dedos que me mastigassem. Não durei muito tempo, tapando com a boca um orgasmo que ela veio colher com uma língua agressiva. O gosto de vinagre me azedava. E dentro dela dedos ásperos começavam a erguer novamente um homem que eu não conhecia em mim. Não sei por quanto tempo fizemos aquilo, porque eu tinha orgasmos que pareciam desmaios e imediatamente sentia que as mãos do sexo dela arrancavam outro homem de dentro de mim e outra vida renascia, e os olhos iam recuperando as coisas que recomeçavam. Até um fim. Eu não conseguia me erguer ou falar. Apenas ouvia o chuveiro constante, sem outros ruídos. Naquela hipnose, dormi.
Acordei com a sensação de que minhas virilhas pegavam fogo. Minhas pernas formigavam, mas, com a ajuda dos braços, consegui me sentar na cama e acordá-la. Como se ela entendesse, correu a acender a luz de um abajur. Tentei me levantar, mas caí de joelhos, e vi que meu sexo estava coberto de uma farinha e ardia como fogo. Rápida, ela me levou ao banheiro, me fez sentar no bidê e, tirando um aparelho elétrico da última gaveta, rapou meus pelos. Dizia que ainda dava tempo, ainda dava tempo. Tempo de quê?, eu pensava, mas ela já despejava o líquido da minha taça sobre o meu sexo, esfregando forte com as mãos e soprando ao mesmo tempo. Urrei de dor.
Ninguém no edifício poderia ter fingido que não ouviu. Eu tinha quase desmaiado, meus olhos lacrimejavam abundantemente, e vertia água das minhas carnes. Mas eu precisava sair dali. Ela trouxe as minhas roupas, e eu me vesti com muitas dificuldades, sobretudo nas calças. Ela já se vestia para me ajudar a sair, porém eu tinha ainda algo a fazer: sentindo que eu me dissolvia pelas pernas, abri o box – da porta do banheiro ela gritou O meu marido! –, mas só o que vi foi o chuveiro despejando água sobre uma banheira de louça coberta por cogumelos e bolores de cores estranhas, em alguns dos quais cresciam pelos que pareciam de gente.

Este conto de Altair Martins foi publicado na coletânea O melhor da festa 3, publicação da 4ª edição da FestiPoa Literária.