12 de jan. de 2013

FestiPoa - a palavra solta na saliva

Diego Petrarca, poeta e professor de literatura



Uma pergunta pertinente além de ótima pauta para um debate é a seguinte: qual o lugar da literatura para além daquilo que se convenciona como sendo o lugar da literatura? O convívio com a leitura normalmente se resume a salas de aula, bibliotecas, livrarias, na relação com o livro sempre existe um tratamento mais íntimo, particular e solitário, acompanhado de um isolamento para a fruição do texto. Esse é um dos prazeres que a prática da leitura proporciona, a captação de outro universo, outra ordem de códigos e significados em que o mundo real muitas vezes não chega a ser uma referência.

No entanto, todas as reflexões inteligentes que se façam para ressaltar o verdadeiro poder transformador da leitura nas civilizações, muitas vezes são menores do que a sobrevivência de empresas, negócios, práticas do sistema capitalista e coisas distantes aos nobres sentimentos em torno da literatura, que resiste e existe como arte, embora muitos não consigam enxergar suas verdadeiras utilidades nesse mundo, prova de uma cegueira mental que às vezes dá seus ares por aí.

Atrevo-me a responder que a o lugar da literatura é o lugar da linguagem: códigos e signos são as máquinas reais da evolução. E desde 2008 existe um evento literário em Porto Alegre capaz de alargar o tema literatura , pois celebra justamente o intercâmbio das linguagens presentes nas produções artísticas de hoje em dia. Um evento já incorporado à vida cultural da capital gaúcha cujo ponto de partida é a Senhora literatura. Justamente: a FestiPoa literária chega ao seu 6º ano consecutivo em 2013 com a marca da pluralidade e o valor das suas abordagens. Ainda não se tinha visto em Porto Alegre uma atividade literária declaradamente descontraída, que acolhe a diversidade e deixa inclusive o público a vontade, sem aquela pretensão incômoda e antipática de que literatura é para poucos entendidos, não existe a manutenção do velho conceito de que literatura é artigo de luxo. Existe sim uma profusão de informação, com repertório largo de opiniões, reflexões, visões arejadas sobre o tema literário.

Não há apenas a valorização do debate em que a ênfase está somente na leitura, a conversa vai além do livro e chega aos bastidores da escrita, ao mercado editorial, ao sistema literário, a presença do autor em carne , osso e coragem, as experimentações com a linguagem, a palavra levada ao palco, a preocupação em gerar a discussão em que se apontem novos caminhos para a literatura estar mais presente no cotidiano. E uma atenção especial em fazer com a palavra criativa comunique, dê informação através do faro estético.

A FestiPoa Literária carrega em sua bagagem esse histórico da movimentação da palavra em vários suportes, palco, leitura, show e debate, exposição, não pretende veicular uma única opinião ou ponto de vista absoluto, exige o ingrediente da provocação, da diferença, do embate cultural onde se pode gerar saída para algum impasse aparentemente impossível de esclarecer. A negação do senso comum tendo em vista simultaneidade das discussões e o exercício de um pensamento dinâmico, tudo isso faz essa celebração da literatura afirmar-se na programação cultural da nossa cidade desde sua primeira edição. Já é natural que literatos e artista de um modo geral esperem a próxima temporada da FestiPoa Literária, cuja programação tem ocorrido nos meses de abril e maio.

O jornal Vaia poder ser considerado o irmão mais velho da FestiPoa, de certa forma o periódico funciona como uma versão impressa do evento. Do mesmo modo, reúne conteúdos literários variados e está sempre atento as novidades, lançamentos e projetos artísticos. Abre espaço para ensaios, entrevistas enormes, completas, que não deixam escapar nada sobre determinado autor, além das páginas generosas dedicadas a produção literária e poesia em suas edições, reunindo novos autores e nomes badalados.

Pode-se comparar o jornal Vaia a um dos suportes do projeto Festipoa, pois ele cumpre e veicula a mesma matéria literária e do mesmo jeito existe a despeito de qualquer padronização da área. Este ano o jornal terá uma edição exclusiva inteiramente dedicada a 6ª edição da FestiPoa. Pode ariscar dizer que o jornal Vaia foi o sopro inicial desse evento literário mais eclético da cidade de Porto Alegre.

Um aspecto para mim muito importante na articulação da FestiPoa é aquilo que denomino como sendo hierarquia da consagração, ou seja, o critério de organização do evento não depende em momento algum da predileção do critério do autor renomado, não prioriza isso como pauta principal. E faz toda diferença. O nível de valorização do autor estreante ou mesmo sem um livro publicado convencionalmente, tem a mesma importância na execução do projeto.

Essa prática é inclusive destacada na programação, é comum, por exemplo, haver uma mesa que reúna as autoras com anos de carreira e publicadas inúmeras vezes por uma editora de circulação nacional, junto com o jovem que recém publicou seu primeiro livro por uma gráfica regional. Evidentemente a atenção do público pode estar concentrada no autor renomado, no entanto, a surpresa do diálogo possível entre os dois nomes certamente será curiosa e inusitada: dessa aproximação pode haver uma nova informação, um choque de ideias, um faísca de gerações diferentes que tem em comum o ofício da escrita, com diferentes referências. Esse modo de formatar o evento é uma característica singular da FestiPoa, sem aquela típica ostentação ao nome ou tema consagrado.

A FestiPoa Literária é, efetivamente, a festa da literatura em Porto Alegre, sem perder a consciência da festa como celebração, como brinde e exaltação ao tema literário, desapegada a preconceitos ou regras excludentes: o público é parte integrante da programação tanto quanto a obra destacada ou o artista reverenciado. O público é organismo da festa e não mero coadjuvante. Em tempos felizes de fomentação e veiculação da leitura, desde ONGS a iniciativas públicas e privadas para a propagação da leitura, a FestiPoa é um brilho a mais na continuidade da difusão da leitura em nosso país.

A FestiPoa já contou com a participação de autores e artistas regionais e de expressão nacional. Para citar alguns nomes: Marcelino Freire, Laerte, Antonio Cicero, Ademir Assunção, Rodrigo Garcia Lopes, Nelson de Oliveira, José Castello, Nicolas Behr, Wladimir Cazé, Antonio Carlos Secchin, Virna Teixeira, Zeca Baleiro, Vitor Ramil, Paulo Scott, Ítalo Moriconi.

A prática de contar a cada edição com um homenageado local trouxe à FestiPoa a participação luxuosa de João Gilberto Nol, Luis Fernando Veríssimo, Sergio Faraco, Donaldo Schüler e Ivo Bender. Os autores cara a cara com o público, respondendo perguntas, apresentando ideias, lendo ao vivo em voz alta seus textos, trazendo a literatura para fora de casa, permitindo uma relação coletiva com a palavra escrita, percebendo outros tratamentos para a prática literária, lembrando o movimento Beat e suas longas apresentações com leituras e conferências abertas sobre poesia e criação, fazendo a literatura atuar nos palcos, nas mesas das livrarias, nos bares e teatros (renovando, portanto, a ambientação para a prática literária) tornando a palavra viva e não escondida nas prateleiras, desafinando o coro repetido dos contentes e bagunçando um pouco a velha ordem do exercício solene da literatura, tornando-a linguagem crua e alcançando públicos maiores, integrada à música, artes plásticas, teatro, performance, a literatura espelhada em outras expressões artísticas, tudo ao mesmo tempo agora.

O êxito declarado do Festipoa já tem razão de ser. Promove inúmeras questões sobre a veiculação da literatura. De cara, traz à tona a renovação dos meios por onde pode circular o texto. Além disso, diz respeito também a relação obra, autor, público, os suportes por onde corre a palavra escrita, a literatura enquanto exercício não especificamente intelectual, as inúmeras práticas possíveis com a palavra criativa e as confluências realizáveis com outras áreas. Tudo isso é tema para a FestiPoa, a festa da palavra solta na saliva.